18 de dezembro de 2018

Postais do Gurué


Lá longe, encravada nas montanhas da Zambézia, existe  o Gurué, uma pérola Moçambicana. 

Partilho alguns postais...

















22 de novembro de 2018

Com a força de acreditar



Não nos sentimos bem por qualquer motivo e vamos ao médico, mas a medicina convencional dá imenso trabalho. Qualquer sintoma tem que ser devidamente diagnosticado, fazer análises, esperar a vez, estar em jejum, entrar em máquinas assustadoras, certificar que o seguro cobre o que precisamos, consultar um especialista e outro médico para ter 2ª opinião, recear o tratamento, pedir conselhos, duvidar e aceitar…para no fim, levar para casa um saquinho cheio de medicamentos.

Veja as maravilhas duma ciência com ambições de exacta. A solução imediata, sussurrada ao ouvido do ego, para problemas do dia a dia, que tocam a todos os seres humanos.


A promessa é de resolver rapidamente dificuldades palpáveis que levarão ao caminho da satisfação. Repare que nenhum curandeiro nos promete a felicidade, a generosidade ou a paz interior. Isso são abstracções cujos alicerces pertencem à dimensão do obscuro. Não valerá a pena pagar por isso, pensam alguns.

Haverá melhor que isto? Por uma retribuição mais ou menos volumosa (dependendo dos objectivos), que pode incluir dinheiro, cabritos ou roupa, o curandeiro faz magia a quem precisa de a receber. Há mestria nestas ciências com ambições de exacta, não pense que são um bando de charlatões. Se ninguém cortar as ervas daninhas elas irão proliferar…



Veja a enorme vantagem de ter todos os médicos num único individuo, que atende com marcação prévia, resolvendo qualquer e vários problemas duma assentada. Por um cabrito ou um casaco digno somos atendidos com um punhado de sementes, penas de galinhas, velas e discurso assertivo. E aqui é que me pergunto sempre: “onde está de facto a cura? No curandeiro, ou na força de acreditar?”

Repare na ambiguidade de algumas promessas: i) “Controlar as traições do seu parceiro”: significa o quê mesmo? Seleccionar a qualidade das amantes? ; ii) “Carteira mágica”: na magia já se sabe, aparecem e desaparecem coisas ; iii) E num comentário geral, o homem, parece que os problemas estão centrados no homem e quase todas as curas são-lhe direccionadas.

Se não tivesse vivido de perto com um caso dum curandeiro, diria que tudo é mentira. Hoje em dia digo, para alguns casos, “respeito”, pois há tratamentos tradicionais relativamente pacíficos, mesmo que não os entenda muito nem recorra a eles.

Noutro dia dizia-me um senhor, por quem tenho muita estima e em quem confio, que já não conseguia arranjar mulher. Depois dos primeiros encontros elas fugiam. Explicou-me que a ex-mulher lhe tinha deixado um feitiço e que o corpo rejeitava novas conquistas. Céptico, respeitando quem mo disse, tentava focar-me nos factos. Fiz algumas perguntas mais técnicas sobre o assunto e nada, o efeito parecia estar dentro dele. Sem explicação. Pediu-me ajuda para ir ao curandeiro e ajudei-o, sempre duvidando sobre a escolha. Não entendia o sintoma, fazia-me confusão a consulta dum curandeiro, mas queria ajudar aquela pessoa, muito querida para mim.

Metemo-nos no carro e depois de mais de 200km percorridos, entrados num mato denso, todo igual até depois do horizonte, pediu-me para ficar “naquela árvore ali”. Pediu-me que o viesse buscar daí a 3 dias. Deixei-o, sem nenhuma pergunta, mas como havia milhares de árvores iguais, pelo sim, pelo não, medi um ponto GPS, para me orientar no regresso. Três dias depois lá estava ele, “naquela árvore ali”, com um sorriso nos lábios e um cabrito pela trela, para me oferecer pelo apoio. Apenas perguntei se tinha corrido bem. Ele disse que sim, sorrindo e pousando um olhar esperançoso no horizonte. Eu nunca soube qual era o verdadeiro problema nem qual foi a assertiva cura.

Uns tempos depois disse-me que estava tudo resolvido. Que podia finalmente escolher uma companheira (escolher, veja o luxo!). Mantive o silêncio de qualquer curiosidade. Estava feliz pela sua felicidade. Ali à minha frente estava um problema resolvido, um homem feliz, uma força de acreditar…

Há outros “tratamentos tradicionais” que ultrapassam a irracionalidade, afectando a mente e todos os direitos possíveis,  como as aberrações de colectar órgãos de pessoas albinas, “pacientes” que morrem porque tinham o diabo no seu interior, ou ter relações sexuais com virgens sob a promessa de limpar o VIH. Qual será a força de acreditar nisto?

Pessoalmente, quando tenho alguma maleita, continuo a preferir a medicina convencional, onde qualquer sintoma tem que ser devidamente diagnosticado, fazer análises, esperar a vez, estar em jejum, entrar em máquinas assustadoras, certificar que o seguro cobre o que precisamos, consultar um especialista e outro médico para ter 2ª opinião, recear o tratamento, pedir conselhos, duvidar e aceitar…para no fim, levar para casa um saquinho cheio de medicamentos.

30 de outubro de 2018

Expressões expressivamente expressivas II


A pedido de várias famílias, as expressões expressivamente expressivas expressam-se numa expressão expressa de 2º volume.
No 1º volume referi que “Se não te conhecesse, constituirias parto”, mas com leitores tão entusiastas “onde há manobra, sempre há espaço”. E porque “O que abunda não prejudica”, esta lista de expressões arrisca-se a ser aberta, ilimitada. Sinto-me “Mais ou menos normal“ e “Já bebi água de pé” com a primeira trovoada tropical, de que tinha tanta saudade.  Quanto à inspiração para escrever há dias em que “vou na tua casa e te encontro enquanto não estavas” e tristemente “desconsigo”.
Há outros dias em que muito depois do lá,  Láaaaaaa” nos confins do labirinto cerebral, surgem ideias e, com os contributos que foram feitos, justifica-se mais um leque de expressões de ADN Moçambicano. E depois deste post digo tão simplesmente…“Hei-de vir”.


1.    “Não sei do seu lado”. Numa Era em que muitas vezes o cumprimento matinal sai de forma arrastada “hhmmdia”, em Moçambique costuma haver tempo para um cumprimento prolongado , dedicado. Na verdade são apenas 10 segundos do dia que, condimentados com um sorriso, só trarão boas energias à jornada:

- Bom dia, como está?
- Estou bem, “não sei do seu lado” – querendo retribuir a simpatia e saber igualmente como está o primeiro interlocutor
- Vai-se andando, obrigado – e termina o diálogo

            Tão simples e tão mais agradável…


2.    “Ainda”. “Ainda” sem não à frente, para simplificar. Se “ainda” e “não” andam sempre juntas, porque não omitir o “não”? O “ainda” reflecte um processo em curso, ainda não acabado:

Pergunta 1: Já parou de chover?
Resposta 1: Ainda...

P2: Comida já está pronta?
R2: Ainda…

P3: Podemos ir agora?
R3: Ainda…
           
            Simplifica, certo?
Só custa receber o “ainda” quando abordamos alguma instituição em busca da emissão do nosso documento e recebemos um preguiçoso e indisposto “aaaaiiinda”, sem mais nenhuma esperança…


3.    “Txonado” – é estar sem dinheiro. Naquela fase do mês em que o cinto está apertado, com dinâmica financeira muito reduzida, a aguardar pelo dia de pagamento. 

4.    “Txunado” – curiosamente, e com a mudança de apenas uma letra, o “txunado” é aquele ou aquilo que está aprumado, com requinte, bem apresentado.

Será coincidência a mudança de espectro com a alteração duma letra apenas, ou dará jeito confundir o ouvinte na expressão oral?

5.    “Fala mais que a boca” usa-se basicamente quando uma pessoa fala muito, mas não diz nada. Não deixo de achar especial graça a esta expressão, comparando o volume excessivo de palavras com a secção labial que forma a boca. Imagino que alguém que fala mais que a boca vomita sem se poder distinguir nem aproveitar nada que foi deitado fora.

6.    “Incomodado”. Uma das mais discretas formas de dizer que se esteve doente. Às vezes é difícil dizer como se esteve doente e quando descrevemos os sintomas ao chefe, ele não acha nada que isso seja doença e classifica-a como ronha. Outras vezes são os amigos a descrever que estiveram muito mal, detalhando em demasia as dores ou sintomas que dispensávamos muito bem. “Estive incomodado”, quando não há condições de sairmos de casa, descreve tudo, sem detalhes desnecessários, sem invasão de nenhuma das suscetibilidades. Curto, explicativo e inócuo.

7.    “Sentar”. Não, não é o verbo transitivo de “colocar em assento” ou o verbo pronominalde “tomar lugar” ou “colocar-se”,  que a Tertúlia não é um dicionário convencional. Sentar é um acto social, profissional ou de lazer.

Quando se diz entre colegas que temos que “sentar” é porque o assunto requer reflexão e não se pode decidir num corredor, de ânimo leve.
Entre amigos o “sentar” já significa conviver, de preferência bebendo ou comendo algo. O seu expoente máximo é quando se faz uma “sentada” ao Domingo, num daqueles almoços sem hora nem gargalhada para acabar.

“Sentar” significa ter tempo para…
  
8.    “Até ontem”. Ouvi tantas vezes: “até ontem não vi”, “até ontem não soube de nada”, “até ontem não foi feito”, “até ontem não aconteceu”, que comecei a questionar-me: porquê até ontem, se estamos a falar hoje? Resolvi perguntar o porquê do “ontem”. Obtive como resposta: “porque hoje ainda não acabou, e ainda pode acontecer”. Sentido de presença muito apurado! Entendido…
  
9.    “Dar voltas”. Dar voltas tanto pode ser fisicamente, como dentro da própria cabeça. Significa andar em rodeios e não alinhar com a direcção certa. Dar voltas é perder tempo, o que nem sempre é óbvio, pois com algumas voltas pode-se aprender algumas coisas…

2 de outubro de 2018

Expressões expressivamente expressivas


Neste regresso a Moçambique as saudades têm sido saciadas faseadamente, como se uma criança embrulhasse os seus próprios brinquedos e abrisse os presentes 2 anos depois. O meu sorriso surpreende o rosto quando por aqui e por ali volto a ouvir as expressões de ADN Moçambicano, fiéis registos da sua cultura. Expressões complexas de traduzir, mas que são pérolas para quem está por dentro da cultura…

Quando leio Mia Couto deparo-me com palavras que não existem, não vêm em nenhum dicionário, mas que naquele contexto são perfeitamente percetíveis. Aliás, se pensar bem, dificilmente haveria melhor palavra para colocar na frase, mesmo que, até ao momento, a desconhecesse. É que na falta de léxico ou de tempo para compor uma ideia de forma a nos fazermos entender, é melhor recorrer às expressões populares, maturadas e quase sempre com níveis elevados de humor.

Partilho algumas:

1.     “Se não te conhecesse, constituirias parto” . Sempre ouvi esta expressão, ou melhor, metade dela. Sempre ouvi “Se não te conhecesse…” e assim ficava incompleta a pairar no ar, deixando espaço à curiosidade sobre a 2ª parte da condição que teimava em não sair. Finalmente ouvi uma versão, e que versão! Vejam bem a dificuldade de pronunciar “c-o-n-s-t-i-t-u-i-r-i-a-s” rapidamente (sim, porque expressões demoradas dispersam a atenção do ouvinte)! O parto aqui transmite algo novo, por descobrir, que pode surpreender…

2.     “Hoje vamos beber água de pé”. Quando se prevê uma chuvada diluviana. Daquelas tempestades escuras que roncam já no horizonte, dando o último aviso para cada um se precaver, antes de atirar as nuvens com força contra o chão.

3.     “Onde há manobra, sempre há espaço”. O que é totalmente diferente de “Onde há espaço, há sempre manobra”. Deixo-vos com o prazer da análise.

4.     “Fui na tua casa e te encontrei enquanto não estavas”. Aquela que, depois de dita, nos deixa o cérebro a descodificar o seu significado e a tentar reorganizar a ordem das palavras para dar um sentido lógico. Mas no abstracto, está dito, alguém foi ao nosso encontro e…encontrou a ausência. É válido.

5.     “Hei-de vir”, que na maioria das vezes se pronuncia “Hei di vi”. É um compromisso de alguém que virá ao nosso encontro. No entanto, o cumprir da intenção é de prazo incerto. Pode acontecer na próxima meia hora, próximos dias…ou não acontecer. Por isso, quando alguém diz “hei di vi”, é sempre bom perguntar “quando?”. Não soluciona, mas pode ajudar…

6.     “O que abunda não prejudica”. Uma expressão ambígua, que dança no gume duma faca. Analisemos. Surge de imediato na cabeça a pergunta: “E se o que abunda for mau?, A expressão ainda será válida?”. Afinal de contas diz-se que tudo em excesso faz mal, até beber água! Mas se o que abunda ainda não está em excesso, o que é mau é demais e o que é bom queremos em abundância, então sim, “o que abunda, não prejudica”…

7.     “Láaaaaaa”. Expressão de medida de distância numa localização geográfica. Se for ao virar da esquina é “lá”, se precisarmos de andar 1 hora é “láaa”, se for preciso viajar de carro, então será “lááaaaaa”. A dificuldade reside no número de “a” que ouvimos e na conversão dessa escala para uma escala métrica. Quantas vezes já ouvi “láaa”, quando afinal era “lááaaaaaaa” e fartei-me de andar…


8.     “Mais ou menos normal“. Expressão que contribui tanto depois de dita, como contribuía antes de ser dita: nada. Se perguntar a uma pessoa como ela está e ela lhe responder com ar sério e cerimonioso “mais ou menos normal” a que conclusão chegaria?

9.     E a cereja no topo do bolo: “Desconsegui”. Esta expressão é muito mais do que a simples negação de “conseguir”. Quem já a ouviu, certamente percebeu isso. O “desconseguir” engloba em si a tentativa de alcançar e a frustração do insucesso. É uma expressão carregada de desalento e que dispensa qualquer interrogação, pois quem o diz, tentou bastante. Está implícito.

9 de setembro de 2018

Jogo de cintura


No fim dum dia de trabalho, no norte de Moçambique, numa casa de estadia para as equipas, tentava preparar o meu jantar. A cozinha era desconhecida e isso implica sempre algum gasto de tempo a encontrar o lugar das coisas. Mais voltas, menos voltas, 3 ou 4 tentativas e os utensílios e ingredientes estavam encontrados. O maior problema apareceu na hora de ligar o fogão elétrico. Parecia ser incapaz de o fazer e o azeite que já tinha posto na frigideira arriscava-se a ficar frio. Precisava de ajuda!

Chamei o guarda da casa, pois em Moçambique há quase sempre um guarda, ajudante ou auxiliar, como preferirem. Veio um ancião de pé descalço calejado e cabelo quase todo branco. Simpatia quanto baste, mas sem passar muita confiança. Nenhum sorriso. Expliquei-lhe o problema e ele, com sabedoria madura, disse:

- Aqui, o problema… - e eu fiquei radiante, pois ele em tão pouco tempo já tinha percebido o que se passa com o fogão – é você não saber usar o fogão!

Murro no estômago, calafrios na espinha, olhos esbugalhados! Então eu, macho latino, homem independente, pai de filhos, não sei usar um simples fogão?, pensei eu enquanto abria e fechava as mãos num gesto nervoso. Mas, digerida a fúria, a verdade é que não estava a saber usar aquele fogão e, se dependesse de mim, ia para a cama de estômago vazio. Respirei fundo e respondi:

- É mesmo? Peço então para me explicar, meu pai… - no melhor sotaque Moçambicano que encontrei
Ele esticou os braços e abriu as mãos na direção do fogão com muita cerimónia, como quem estava prestes a desvendar o mais importante mistério a seguir ao big bang.

- Você tem esta luz aqui perto do botão… - começa ele.

- Sim – murmuro eu com muita atenção.

- Quando esta luz está acesa, o fogão está apagado, não aquece.

- Sim – continuo eu, igualmente atento, pois esta instrução era fulcral para o meu jantar.

- Roda o botão e a luz apaga – continua o ancião.

- Sim – acompanho os passos todos.

- Quando a luz apaga, o fogão aquece – termina o ancião, com um sorriso inédito e com a confiança de quem acaba de dar a palestra mais importante do dia.

E era a palestra mais importante do dia, pelo menos para mim. Uma explicação dum problema aparentemente simples foi na verdade o remover dum muro intransponível, que me impedia de fritar um simples ovo! Eu fiquei imóvel, surpreendido pela explicação. Apenas consegui dirigir os olhos ao ancião e num levantar de sobrancelha disse “OK”. Acho que consigo lidar com essa peculiaridade do fogão, pensei.

O ancião saiu na maior descrição e eu fiquei sem reação sequer para o cumprimentar. Eis uma boa lição, pensei, sozinho, com os ovos na mão e o azeite a aquecer. Se tivesse insistido na arrogância inicial, tinha passado fome. Afinal era verdade que eu não sabia usar aquele fogão. Comi o jantar e fui dormir de estômago consolado.

1 de setembro de 2018

Generosamente Pedro


O destino quis levar-te demasiado cedo com tanto ainda por dizer e fazer. Resta-me aceitar e saborear as tantas e tão boas memórias que tenho de ti.



Nesta despedida física, de tanto adjetivo que se tem usado para te caracterizar, há um que foi unânime: generoso. É nele que pego para te agradecer.

- A generosidade do teu sorriso inigualável. Sorrias com todo o rosto, contagiando  boas energia e outros sorrisos;

- A generosidade que te permitia sempre ter uma palavra construtiva sobre qualquer pessoa;

- A forma generosa com que vias a beleza dum desafio do caminho, onde muitos apenas reclamavam dum trilho sinuoso e cheios de pedras;

- Quando partilhávamos alegrias, tinhas a generosidade de substituir as palavras que não te saiam pela garganta trémula com um abraço. Um abraço grande, demorado, de veludo, que tanto dizia sem uma única palavra;

- A generosidade que te afligia se não conseguias soluções humanas e simples para problemas grandes no trabalho;

- A generosidade que te deixava feliz com a presença ou a felicidade dos que amavas;

- A generosidade com que agradecias cada dia da vida, por estares vivo, por estares de saúde e teres uma nova página por escrever;

- A generosidade do discurso assertivo, de palavras ponderadas, sem rodeios;

- A generosidade de teres sempre tempo para escutar, enrolando um caracol no cabelo ou cruzando os braços na tua característica barriga e dizendo: “hhmmm”, recebendo de forma neutra a mensagem;

O mundo perdeu um grande ser humano, perdeu um poço de generosidade.

Levarei comigo, na caminhada, a tua voz, a tua paz, o teu exemplo, o teu sorriso, a tua generosidade. Tenho a certeza que tornará o percurso muito melhor.

Obrigado por ter feito parte da tua vida e termos partilhado tanto ao longo do caminho.

Até um dia, onde nos encontraremos algures para partilhar uma garrafa de vinho…

3 de julho de 2018

Um estranho em Hyenpung


Hyenpung é a zona da Coreia onde morámos durante quase 6 meses.





Zona nova, a 20 minutos da cidade de Daegu, urbanizada e pensada a régua e esquadro. Por vezes pensava que a zona tinha sido desenhada por um especialista no famoso jogo SIMCITY. Nem a floresta de edifícios de 20 andares me chocavam. A Coreia tem um pouco mais de área que Portugal, mas quase 51 milhões de habitantes. Ou seja, uma densidade populacional bastante maior que em Portugal. Assim, se alojarmos as pessoas na vertical, há mais espaço na horizontal para a circulação, espaços de lazer, zonas comerciais, passeios nas montanhas, etc…



O estranho fui eu, que em quase 6 meses, os estrangeiros que vi não me encheram os dedos duma mão. Ser estrangeiro em Hyeonpung é quase como ser uma celebridade. A grande diferença é que nunca ninguém me pediu um autógrafo ou quis tirar uma selfie comigo.

Ao apanhar o autocarro em Daegu para Hyenpung o motorista bloqueia a minha entrada. Com um ar muito admirado e tenso diz-me para não entrar, pois o autocarro vai para Hyenpung. Dá ideia que irei passar uma barreira proibida aos estrangeiros, ou talvez ele tenha medo que me tenha metido num autocarro por engano. Digo-lhe que sim, o meu destino é Hyenpung. Ele cede e deixa-me entrar, mas abana a cabeça, como se eu estivesse prestes a fazer um erro grave.

As crianças perdem a postura que as levava pacatamente para casa. Fazem sinais nervosos, chamando a atenção aos amigos para o “fenómeno”. Os sinais são universais, de maneira que quando dão as primeiras pancadas nas costas dos amigos, já eu me rio por dentro. Olham esbugalhados, incrédulos, pois as personagens dos livros da escola, que dão conta de outros países e culturas são uma realidade. Parece que saí das páginas dos estudos e deambulo como exemplar vivo do Ocidente.

Algumas crianças mais velhas tentam o diálogo em Inglês, tímidos. Ouve-se o clássico “Hello” ao que eu costumava responder “ Hello, how are you?”. Frase que os deixava logo sem fala. Não porque não saibam mais, mas parecia-me que não esperavam resposta e, surpreendidos, fugiam.

Os adultos não costumavam ligar muito. Um sorriso, algumas palavras de Inglês, às quais eu tentava responder no meu mau Coreano, eram suficientes para partilhar cordialidade.

Os mais idosos é que reparavam e muito. As avós não se continham quando me viam com a família. Ao olharem para a Bia exclamavam “mas que menina tão linda, muito parecida com o pai”. Uma observação deveras apropriada para se dizer…em frente à mãe!

Os avôs olhavam fixamente com um espanto congelado no rosto. Os que conseguiam arriscar algum inglês, com um sotaque nem sempre perceptível, diziam: “where?”, “country?”, “from?”, uma palavra que procurava satisfazer a enorme curiosidade de saber de onde vinha este Ocidental. “Portugal”, dizia eu. “Aahh”, obtinha quase sempre como resposta. Um “aahh” que podia significar muita coisa, como “longe”, ou “não faço a mínima ideia onde fica”, ou “isso é um país?”. Mas um “aahh” que encerrava a conversa, pois nem o inglês deles, nem o meu coreano dava para maiores desenvolvimentos. Acabava o curto diálogo com o meu melhor sorriso.

9 de junho de 2018

Homenagear os antepassados

Hoje trago-vos uma experiência da Coreia do Sul que me comoveu bastante. Nós em Portugal temos por hábito celebrar o 1º de Novembro homenageando entes queridos falecidos. É uma forma de valorizar os antepassados ou alguém que partiu prematuramente.

Na Coreia do Sul, o que me comoveu foi a organização e disciplina de tal evento.

A cerimónia, no passado, era feita em cada dia em que um ente querido (até à 3ª geração) tinha falecido. Além disso eram feitas cerimónias maiores, homenageando todos esses antepassados em conjunto, duas vezes por ano: na passagem do ano lunar e no dia de acção de graças. Com isto chegava-se a ter dezenas de cerimónias por ano! Como na Coreia o tempo é um bem cada vez mais escasso, e as pessoas gostam de ter vida, em muitas famílias faz-se apenas uma cerimónia, no dia de acção de graças.

Só é possível fazer esta cerimónia com uma descendência de homens, ou seja, se um casal só tiver filhas, acaba-se a cerimónia na família (sim, a sociedade Coreana é bastante machista).

As mulheres preparam a comida (hoje em dia os homens já dão uma ajudinha) durante horas a fio.

As quantidades são muitas vezes superiores às barrigas na sala, e até aos olhos todos somados! Inexplicável. Dá a sensação que a qualquer momento entrará pela porta uma equipa de futebol esfomeada para ser alimentada, mas isso nunca acontece.


No altar, estão escritos os nomes dos familiares falecidos, com caracteres chineses (país de onde vem esta cerimónia). Contam-se 3 gerações para trás e lá estão todos lembrados. Não deixa de ser emocionante que, nem que seja por um dia, por umas horas, haja a humildade de homenagear quem nos pôs no mundo e quem fez o que pôde para ir prolongando a história da família.




Os antepassados são servidos com toda a comida preparada e há um brinde para celebrar tal momento. A vénia não pode ser esquecida, nunca o é. Desde os primeiros passos na educação duma criança têm que prestar cordialidade aos mais velhos, seja na linguagem, nos modos ou na vénia.





Depois de saciados e homenageados os falecidos, é tempo de os presentes na sala comerem. A comida, como em qualquer casa coreana, abunda. É indelicado que alguma travessa termine, quando algum dos presentes ainda tiver vontade de comer. Acho que nunca me vou habituar à ideia.

Durante a refeição, não pude evitar o desviar frequente do meu olhar para o altar, sentindo que os antepassados observavam em paz a nossa refeição. Agradecia, sem os ter conhecido, de terem prolongado a família coreana onde entrei, e onde conheci a minha companheira…

17 de maio de 2018

Banhos públicos



Os banhos públicos na Coreia do Sul, assim como em muitos países, nasceram da necessidade de higiene pública. A Coreia do Sul dos anos 50 era muito pobre e traumatizada com a guerra que separou as Coreias. A falta de condições das casas e os Invernos gélidos que traziam temperaturas máximas de -10°C, levou à criação dos banhos públicos para que as pessoas se podesse lavar convenientemente, pelo menos 1 a 2 vezes por semana.

Com o passar dos anos, com o exponencial crescimento da Coreia do Sul e melhoria das condições das casas, os banhos públicos entraram num contexto de SPA: ajuda a desligar do ritmo frenético em que o país mergulhou.

Os banhos públicos são compostos por piscinas, saunas, jactos, jacuzzis e esfoliação. Não há uma sequência a seguir. É ao sabor de cada um...

Piscinas de várias temperaturas. Desde os 15C aos 45C. Pode-se jogar com choques térmicos (adoro!) ou simplesmente ir derretendo o corpo nas temperaturas mais elevadas.

As saunas são variadas, em humidade, temperatura e odores. A mais surpreendente para mim foi uma sauna à temperatura de -10C (não é gralha de escrita. São 10 graus negativos!). Havia inclusive avisos para não nos sentarmos sem uma toalha, correndo o risco de colar as nádegas ao banco.

Os jactos, que devem ter como objectivo massajar e relaxar o corpo, muitas vezes obrigam-me a fugir, tal é a força e a dor que provocam, parecendo ser uma projecção de agulhas!

Os jacuzzis sim, borbulham o nosso corpo com água morna, da cabeça aos pés. É de ficar ali horas seguidas.

Por fim, mas de modo nenhum menos importante, existe dentro do banho público um esfoleador profissional. O nosso único trabalho é deitarmo-nos numa marquesa. Depois, o esfoleador dedica atenção a cada centímetro do nosso corpo. Parecemos um réptil a deixar a velha pele cair no chão. Sai-se de lá com a pele limpa e brilhante.



No primeiro dia que cheguei à Coreia, para conhecer a família da Yumi (e ser devidamente analisado) fui levado a um banho público pelo irmão e pai da Yumi. Que maneira melhor haverá para nos conhecermos do que estar, com potencial futuro sogro e cunhado, em pelota, enfiados numa mesma piscina ou sauna? Assumi que as experiências culturais têm destas coisas e tentei agir com naturalidade. Todos estão nus nos banhos públicos, por isso “se em roma sê romano, na Coreia sê Coreano”. O inglês do irmão da Yumi dá para fazer algumas perguntas, de maneira que tive o interrogatório da praxe, sem direito a advogado nem uma toalhita para me tapar.


Na zona dos duches, quando eu achava que tinha atingido a quota diária de interculturalidade, vejo o irmão da Yumi aproximar-se de mim com uma luva áspera de esfoliação. Percebendo o que ele ia fazer eu disse “no, no...no need, thank you”. Ele segurou-me no braço e, com um sorriso que rejeitava qualquer rejeição, disse “Korean tradition”. No segundo seguinte o irmão da Yumi estava a esfoliar-me as costas no duche com a luva amarela, e eu a elevar os meus níveis da quota de interculturalidade. Olhei em meu redor e reconheci um padrão: os mais velhos esfoliavam os mais novos, fossem estes crianças, ou adultos. Esfoliou-me ainda os braços com tal vigorosidade que pensei que ia deixar os sinais da pele todos no duche. Depois deu-me a luva amarela e disse “you do the rest”. Ufa...

Hoje em dia já vamos aos banhos públicos com a naturalidade de duas pessoas que vão tomar café ou ver a bola.

Muitas vezes vou sozinho, sob o olhar espantado dos coreanos. Mas fazer o quê? Adoro o ritual...

17 de abril de 2018

Kimchi

A primeira vez que experimentei Kimchi disse à Yumi “olha que azar, está estragado”. Ela, com os olhos rasgados semi cerrados, que lhe colocam 3 sorrisos no rosto, abanou suavemente a cabeça e disse “não, isto é kimchi, é assim mesmo”. Detestei o sabor.

O kimchi é um elemento de presença obrigatória numa mesa coreana. Como o pão ou azeite na mesa portuguesa. É uma espécie de pickle de couve, daí o seu sabor um pouco ácido e bastante picante.

Muitas famílias dedicam um fim de semana por ano para a sua confessão, que dará kimchi suficiente para os 12 meses seguintes. Tive a sorte de estar presente num desses momentos e ajudar a minha família coreana na confecção.


A couve usada é a couve china e os ingredientes são ao sabor da inspiração e sabedoria familiar.


Alguns dos ingredientes do tempero são: algas, mexilhões, peixe, alho francês, piri-piri, óleo de sesamo, etc… A mãe da Yumi, perante o meu espanto, não segue nenhuma receita. Corta e atira os ingredientes para o algidar e nós mexemos, fazendo lembrar o caldeirão do panoramix. Vai provando o sabor e lá decide o que acrescentar mais. E nós mexemos. Depois deste ciclo se repetir várias vezes, sorriu, chegou ao sabor que queria e o têmpero estava pronto.



O preço da couve nesta altura do ano é controlado. O governo da Coreia do Sul preocupa-se com o mercado da couve, de maneira a não especular o preço em períodos de alta demanda.

Fizemos 45 couves (cerca de 80 kg), com 5 kg de piri-piri e 10 kg de têmpero. Quantidade suficiente para um ano, para uma família de 4 pessoas. Depois de finalizado o têmpero, há que espalhá-lo em todas as couves, folha a folha, num trabalho de paciência asiática. A casa, nesse dia e, a bem da verdade, nos restantes 364, fica perfumada com o cheiro característico do kimchi, que caracteriza uma boa casa coreana.


Existe pré-feito em várias lojas, mas caseiro é sempre melhor. À medida que se vai fazendo, a mestre das operações vai-me dando a provar. Fervo com o picante, mas delicio-me com o sabor: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Neste momento, sou eu que dou pela falta do kimchi se não estiver na mesa. Passei a ser um grande admirador de kimchi...


Há muitas receitas diferentes, dependendo das pessoas que fazem. Algumas receitas vão passando, dentro da família, como uma herança da sabedoria. A nossa, inevitavelmente, parece-nos sempre a mais saborosa. O tempêro foi ajustado ao nosso gosto e as folhas de cada couve mereceram a nossa inteira atenção. 


Para realçar a importância do kimchi na Coreia do Sul, existe um electrodoméstico específico para guardá-lo durante o ano. Aparelho de presença quase obrigatória em todas as casas, estando preparado para manter o kimchi à temperatura adequada até à próxima produção.


O resultado final é divinal. Picante e ácido, óptimo para balançar gorduras ou comidas mais densas.